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Talvez um dia os meus filhos (que são cidadãos tanto italianos quanto estadunidenses) vão me perguntar onde eu estava no dia em que o Partido Republicano nomeou Donald Trump como candidato à presidência dos Estados Unidos. Eu estava na outra América, aquela que olha para Trump atônita, e que Trump finge que não existe.
Eu passei os dois primeiros e decisivos dias da convenção republicana que está sendo realizada em Cleveland em saguões de aeroportos, em aviões e em hotéis entre a costa oriental e a West Coast dos Estados Unidos. Eu vi um Estados Unidos profundamente diferente daquela descrita por Trump. Um Estados Unidos onde a população branca já é minoria. Um Estados Unidos que funciona graças aos imigrantes. Um Estados Unidos tão conectado ao mundo inteiro que nenhum neoisolacionismo pode parar. Mas é um Estados Unidos que não é representado pelo conservadorismo político, apesar dos valores conservadores de uma parte significativa do país (como os imigrantes latinos, muçulmanos e asiáticos).
Este momento histórico traz à tona algumas questões-chave, que se tornaram evidentes aos olhos de um italiano como eu, que emigrou para os Estados Unidos exatamente oito anos atrás, pouco antes da convenção democrata de Denver que nomeou Barack Obama candidato à Casa Branca.
Há uma questão ideológica: a rendição do GOP a Trump significar o fim de um certo Partido Republicano. Como escreveu Andrew Sullivan, um dos blogueiros conservadores (gay e católico) mais afiados dos Estados Unidos, o espetáculo oferecido em Cleveland é o de uma certa ideologia conservadora que acaba “indo pelo cano de descarga”. Resta ver qual será, in loco, o resultado do repúdio de Trump por parte da maioria do establishment político conservador, de George W. Bush a Mitt Romney. Os “cultural gatekeepers”, os intelectuais que controlavam o acesso ao debate cultural e político, estão em uma crise de autoridade à direita e à esquerda. À direita, a política do medo e da ignorância criaram o fenômeno Trump, que desencadeou os instintos demagógicos e semifascistas de boa parte do ex-partido de Abraham Lincoln.
Há uma questão geracional, de envelhecimento da política estadunidense e dos seus protagonistas. O par Trump-Clinton leva os Estados Unidos de volta aos anos 1980-1990: os Estados Unidos progressistas se refugiam na“identity politics” incapaz de levar o tecido social novamente à unidade; os Estados Unidos conservadores perseguem uma variação do sonho reaganiano sem ter valorizado nenhuma das lições da era Bush. O jovem líder dos republicanos, o presidente da Câmara, Paul Ryan, 40 anos, se limitou a rejeitar apenas as afirmações mais racistas deTrump durante a campanha eleitoral.
Há uma questão étnicaTrump encarna um partido republicano cada vez mais branco, idoso e nacionalista-cristianista, cada vez menos hospitaleiro para todas as outras minorias étnicas e religiosas estadunidenses. É umEstados Unidos que se assemelha mais ao dos anos 1840-1850 (senão ao da guerra civil) do que ao de cada uma das décadas do “século americano”, o século XX. É um Estados Unidos em que a questão da violência não está generalizada, mas circunscrita a um certo tipo de vítimas de uma aplicação desproporcional das políticas de segurança e carcerárias: os Estados Unidos dos afro-americanos é dramaticamente diferente dos Estados Unidos dos brancos.
Há uma questão religiosa. A bancarrota moral e cultural do GOP também é a bancarrota moral e cultural de boa parte do cristianismo estadunidense, aquele que começou a mostrar as suas divisões étnicas graças à ascensão e à presidência de Barack Obama, cuja fé cristã impressionou em nada aqueles que nunca aceitaram em ter um afro-americano como presidente. A nomeação de Trump significa não só o fim do sonho (cultivado pelos evangelicalsassim como por muitos católicos) de reconverter os Estados Unidos através da ocupação do poder político. É o segundo fracasso epocal, depois da conscientização de que também fracassou a via cultural à reconversão do país a um cristianismo anos 1940-1950.
Os Estados Unidos pós-11 de setembro encarnou não só a crise do cosmopolitismo, que permaneceu em Barack Obama como um elemento autobiográfico, sem se tornar cultural nem político, mas também a crise de uma certa ideia de si mesmo. Os Estados Unidos republicanos são um país curvado sobre si mesmo como país, onde cada setor, cada identidade, cada comunidade, cada família faz por si mesmo, e Deus por todos. A partir desse ponto de vista, as consequências dessa involução poderiam ser, no plano global, não menores do que a queda do comunismo na União Soviética e na Europa oriental.
A apostasia do conservadorismo estadunidense ao trumpismo coloca um problema à Europa, ao mundo e, naquilo que profissionalmente diz respeito a mim mais de perto, ao cristianismo, à Igreja Católica e ao Vaticano. A ascensão deTrump põe em crise a narrativa segundo a qual o futuro da religião cristã no Ocidente se encontraria nos Estados Unidos (basta ver quantos bispos e prelados católicos estadunidenses estarão na Polônia para a Jornada Mundial da Juventude na próxima semana): hoje como hoje, a Igreja estadunidense faz parte do problema, e o Vaticano do Papa Francisco faz parte da solução.
Os maiores problemas diante da Europa hoje são o futuro da União Europeia e os refugiados, a Turquia e o Oriente Médio, a Ucrânia e a Rússia. Mas há também uma nova questão estadunidense, independentemente de quem ganhar na terça-feira, 8 de novembro. Seria um erro olhar para o trumpismo como logoro sequel do berlusconismo.