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No jornal L’Osservatore Romano, 12-06-2015, o prefeito Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino, intervém novamente sobre o delicado tema da relação entre Vaticano II e liturgia. E, infelizmente, confirma uma desarmante leveza de análise e de juízo, diante da qual o teólogo deve cuidadosamente trazer à luz todas as lacunas, exercendo a crítica como exigido pela sua própria função profissional, tão preciosa para uma Igreja que queira evitar ser “autorreferencial”.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e doInstituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no blog Come Se Non, 16-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Depois da infeliz entrevista de março passado – que tinha levantado mais do que alguma perplexidade e à qual eu já dedicara um post a respeito – eis que o prefeito Sarah intervém novamente sobre o delicado tema da relação entre Vaticano II e liturgia (L’Osservatore Romano, 12-06-2015; o texto está disponível aqui, em italiano).
E, infelizmente, confirma uma desarmante leveza de análise e de juízo, diante da qual o teólogo deve cuidadosamente trazer à luz todas as lacunas, exercendo a crítica como exigido pela sua própria função profissional, tão preciosa para uma Igreja que queira evitar ser “autorreferencial”.
Alguns anos atrás, eu havia levantado cinco perguntas ao então Mestre das Cerimônias Pontifícias, Guido Marini, que tinha se aventurado no terreno escorregadio da “reforma da reforma”, com argumentos muito fracos e contraditórios.
Hoje, renovo as minhas perguntas ao prefeito Sarah, pelas suas afirmações muito precipitadas e imprecisas. Para favorecer uma reflexão eclesial sobre a liturgia que não repita ingenuamente – e com o crisma da “autoridade” – lugares-comuns tradicionalistas, tanto falsos quanto infundados.
Eis as minhas quatro perguntas, que correspondem às quatro “estacas” do texto que apareceu no L’Osservatore Romano do dia 12 de junho passado:
1) O medo da comunidade celebrante
Pergunto-me, acima de tudo: pode um prefeito da Congregação para o Culto Divino ter medo de uma “comunidade celebrante”? Mas não deveria ser tarefa primária de um servidor da Igreja, como o prefeito do Culto, incentivar o máximo possível comunidades “finalmente celebrantes”, capazes de celebrar, com o gosto de celebrar, animadas e vivificadas pelas suas celebrações?
Mas não: segundo o vício assumido nas últimas duas décadas, parece que um prefeito do Culto, para ser tal, deve advertir, a si mesmo e aos outros, contra comunidades que celebram.
Mas o que deve ser ainda mais censurado abertamente é que um prefeito, que quer ceder a essa tentação, se permita indicar no Concílio Vaticano II a sua “fonte”. Mas não, senhor cardeal, isso não lhe é permitido: mesmo que traga a veste vermelha, o senhor não pode se permitir interpretar a Sacrosanctum Concilium mediante a Redemptionis Sacramentum. Ao contrário, deveria tentar fazer o oposto: tentar justificar as palavras temerosas que gostariam de limitar a “celebração comunitária” à luz do grande texto conciliar. E veria imediatamente o fosso intransponível entre a altura do texto da Constituição de 1963 e a mesquinhez do texto da Instrução de 2004. A passagem descuidada com que o senhor confia a esse texto menor a “verdadeira” hermenêutica do Concílio se assemelha muito à tentativa daqueles que pensavam confiar ao Catecismo da Igreja Católica a hermenêutica mais autorizada do Concílio, no ano da fé.
São estas as pequenas tentativas com que os burocratas tentam fazer com que o mundo (e a Igreja) se torne uma espécie de arquivo de museu. Por favor, senhor prefeito, resista à tentação de se homologar, desde os seus primeiros meses de serviço, ao pedantismo estéril desses burocratas, que têm medo de verdadeiros “sinais de paz” ou se opõem a “traduções finalmente sensatas”.
2) Mediator Dei ou Sacrosanctum Concilium?
A partir do seu discurso, pareceria que há no centro um genuíno interesse pelo “texto conciliar”. Mas me pergunto e lhe pergunto: o senhor tem certeza de que tem em mãos o livro certo? Olhou a capa? Está realmente escrito”Sacrosanctum Concilium” ou, ao contrário, o senhor está lendo a “Mediator Dei”? Certamente, muitas coisas são semelhantes. Mas justamente em um ponto – o decisivo – o texto novo abre um novo caminho, enquanto o texto velho permanece em um horizonte “fechado”, irremediavelmente.
Não por acaso, ainda aquele documento que o senhor cita com tanta ingenuidade, ou seja, a “Redemptionis Sacramentum”, é abertamente um “relançamento” da Mediator Dei, em detrimento das grandes intuições novas daSacrosanctum Concilium.
Como um prefeito de Congregação pode cometer um “descuido” tão grave? A “novidade” da Sacrosanctum Conciliumestá justamente no conceito de “participação ativa” e no fato de orientar a redescoberta da “liturgia” a essa ideia decisiva, que a Mediator Dei ainda não elaborou.
Dito em outros termos: para a Sacrosanctum Concilium, os “ritos e as orações” são a linguagem de toda a Igreja. Por isso, ela espera que, mediante uma “reforma dos ritos”, se possa chegar a “comunidades celebrantes”.
Um prefeito que tema essas comunidades, inevitavelmente, se refugia dentro dos limites da Mediator Dei e não consegue apreciar o verdadeiro significado da Sacrosanctum Concilium. Como é possível que essa “negação daSacrosanctum Concilium” venha justamente do prefeito da Congregação? E que ela alcance o seu ápice quando – de modo tão ingênuo quanto provocativo – o prefeito proponha “anexar” ao Missal Romano pós-conciliar os ritos de penitência e de ofertório segundo o Vetus Ordus: em que nível de incompreensão e de inútil provocação o nosso cardeal quer demonstrar que chegou? Ele pensa estar lidando com um mundo de ignavos, prontos para filtrar cada mosquitinho, mas a engolir o seu bravo camelo, quando quem o propõe é um cardeal? Ele acredita que as “comunidade não celebrantes” estariam mais dispostas a isso?
3) A paz litúrgica como pretexto para dar fôlego a quem faz a guerra
Vaza de novo, também neste último texto do prefeito Sarah, um falso raciocínio, tirado da “cartola” dos diplomatas. “É preciso fazer a paz, não a guerra.” Claro, estamos de acordo. Mas o que se entende aqui por “paz litúrgica”? Entende-se “anarquia” protegida de cima.
Talvez, parece subentender o prefeito, se eu consigo dar a entender que a partir “desta minha altura” – que na Igreja não é a máxima, mas também não é a mínima – eu também “protejo”, ainda se poderá “fazer a paz”.
Na realidade, aqui não se trata de paz, mas de “proteção” de quem não quer jogar o jogo. De cima, depois de 2007, decidiu-se que a “paz” correspondia a “regularizar” quem não quer jogar o jogo do Concílio Vaticano II. Isso talvez possa ter um sentido na Cúria Romana, onde se encontra mais de um desses “resistentes”. E talvez, justamente na Cúria, tal “indulgência” pode ser fonte de paz. Mas de paz “de Cúria”, entendamo-nos, ou seja, da máxima indiferença!
Mas “em outro lugar”, senhor prefeito, o senhor, que é um homem de experiência internacional, como pode pensar que “consentir com a impunidade a quem não quer jogar o jogo” pode gerar a paz? Essa escolha, talvez clarividente naCúria Romana, é totalmente cega, se for aplicada às Igrejas nacionais e à Igreja universal. Só gera anarquia, junto com o abuso do cardeal, que circula em Mercedes, com o seu bom séquito, com muitos policiais com as plumas e celebra, sob pedido, rigorosamente em Vetus Ordo.
Também não fazia assim o “pequeno Ratzinger”, seu antecessor? E também não fazia assim o ex-grande Burke? E o senhor, precisamente o senhor, gostaria, talvez, que esses abusos valessem como modelos?
Certamente, eu entendo que essas formas litúrgicas lhe dão ampla garantia de não despertar jamais “comunidades celebrantes”, mas não lhe parece pouco demais, como resultado, para edificar a “paz litúrgica”? Eu acho que, vindo o senhor de um continente tão marcado pela guerra, deveria usar a palavra “paz” em contextos e com significados decididamente menos “de salão”. A menos que queira reduzir também a sua força a um elemento de salão.
4) Por que citar Francisco despropositadamente?
Em certo ponto do seu texto, eu tive um sobressalto. O senhor cita o Papa Francisco. E tive que me alegrar pela coragem com que o senhor se aventurou entre os textos de Francisco para encontrar um ponto de apoio ao seu discurso litúrgico.
Parece-me que justamente o Papa Francisco exortou os diversos bispos e cardeais a não abusarem das suas palavras e a “pensarem palavras próprias”. O senhor citou Francisco quando adverte contra a liturgia “reduzida a espetáculo”. Mas o senhor, com uma passagem ao menos pouco clara, parece considerar que Francisco quisesse pôr sob acusação o “protagonismo presbiteral” e a “espetacularização do culto”, como se fosse o fruto de uma interpretação errada do Vaticano II.
Eu lhe pergunto, ao contrário: o senhor nunca pensou que o “protagonismo presbiteral/episcopal” é apenas o fruto de uma sobrevivência na nova Igreja inaugurada pelo Concílio de uma leitura da liturgia como simples “ação do padre”? Não seria fácil reconhecer que, na raiz dessa distorção, não está, de fato, a pretensão de uma comunidade celebrante, mas sim uma leitura não equilibrada do único sujeito que age “in persona Christi”?
Não é a “comunidade celebrante” o problema, mas a ideia de que seja “um só” a celebrar que altera irremediavelmente as coisas e distorce tudo.
Por isso, senhor cardeal, o seu artigo no L’Osservatore Romano do dia 12 de junho parece-me mais uma grave queda de estilo, não para o senhor, mas para o cargo de prefeito da Congregação para o Culto Divino. Um prefeito que realmente queira servir uma autêntica implementação do Vaticano II nunca escreveria uma única linha daquilo que apareceu com a sua assinatura.
Esse é um fato grave. Sobre o qual um teólogo, que queira servir a Igreja, nunca poderá silenciar, em caso algum.